(Parte 2)


No verão de 2009 escrevi um texto a pedido de um colega pesquisador, relacionando as técnicas ambientais ancestrais aos movimentos místico-esotéricos em voga na época. Seria o Feng Shui Tradicional uma metodologia concreta e prática, avessa às questões sensíveis ou existiria um fio comum, mesmo que tênue, que ligasse tais estudos ao complexo e tão contraditório universo da espiritualidade?

De uma maneira adaptada e formatada para o presente contexto, apresento, em duas partes, o conteúdo escrito há 9 anos e apresentado na obra Feng Shui Clássico nos Novos Tempos – Uma Perspectiva Consciencial e Imanente, de 2015. Parece-me ainda relevante, enquanto parâmetro reflexivo, tendo em vista as dinâmicas atuais referentes às buscas existenciais e processos de cunho global. Vamos à parte dois, portanto...



Continuando as reflexões sobre Feng Shui e Espiritualidade, nesse momento insere-se o questionamento sobre a possibilidade de que uma correção colocada num ambiente possa ter uma condição de linguagem. Mas o que seria isso? Para ilustrar melhor, utilizar-se-á o seguinte contexto: a maneira como o conceito de harmonização mudou na evolução histórica do Feng Shui Tradicional.

A noção de intervenção energética de um ambiente (não considerando os rituais de consagração e purificação chineses) se baseava somente em estímulos através de mudanças no fluxo do Qi (mudanças de portas, aberturas, caminhos, etc) em seus dois aspectos básicos: Fan (posicionamento) e Wei (direcionamento). Basicamente, é o que hoje alguns consultores denominam como intervenções estruturais. Com o aumento da complexidade urbana, a substituição das casas pelos prédios, etc, muitas correções que se baseavam em Fan Wei se tornaram difíceis de serem realizadas. Nas primeiras décadas do século XX, um mestre de Feng Shui lançou uma ideia até então inovadora, quase radical: se não é possível mudar o ambiente pelo fluxo, tenta-se, por conseguinte, mudar a percepção (enquanto significado) dos moradores em relação a esse espaço. E para incrementar o fator cognitivo, um objeto é inserido como representação máxima dessa mudança de perspectiva. Naturalmente, valores metafísicos são adicionados ao objeto em questão, reforçados, principalmente, pela teoria do Wu Xing. Chamou-se essa abordagem de Jie Hua.

Prioritariamente, Jie Hua se estruturaria em dois aspectos, quase uma tradução de seu significado: ser correto de maneira prática e de maneira ritualística. Em outras palavras, não seria o objeto em si que efetuaria a harmonização, mas a maneira com a qual a mesma se conecta em significado simbólico (expressado na forma e na função mística) via usuário, ao local. Tendo isso em vista, seria ainda necessário para o homem que esse objeto tivesse uma conexão prática no uso cotidiano ou pelo menos que não gerasse desconfiança, repulsa ou mesmo uma dificuldade de aceitação (em vez da problemática imposição ainda em voga por parte de alguns consultores: “a cura terá que ser colocada nesse ponto e será com essa estética chinesa, para gerar prosperidade, queira o seu marido ou não!!”).

É interessante observar que a transformação do símbolo ao status de “cura” acaba denotando uma total inversão de valores, já que um simulacro passa à agente principal, em vez do ser humano. A função Jie Hua transforma-se, enfim, de representação icônica à aspirina transcendental reforçada pela retórica dos 5 Elementos. “Mas funciona e muito bem!”, diria o consultor fervoroso. Naturalmente, a observação não é relativa à eficácia do sistema (já em cheque, conforme abordado em artigos anteriores), mas a sua estrutura conceitual. Tais “curas” terão natural repercussão positiva, caso a peça supervalorizada consiga gerar massa crítica suficiente (seja pelo cliente ou até pelo consultor) enquanto significado, tornando-se o contraponto e complemento da suposta área em que está uma combinação nefasta de Estrelas Voadoras ou um portento “letal” do Ba Zhai. Dessa forma, quanto mais pessoas usarem essas representações ao longo da história, mais reforço semântico (no sentido harmônico) existirá da próxima vez em que ocorrer uma intenção ritualística similar. Assim, é provável que tanto a evolução das teorias quanto a exaltação das curas estejam intimamente conectadas e estimuladas pelo que Rupert Sheldrake chama de Campo Morfogenético (aspectos já bem modificados após 2012).

Por conseguinte, usando o conceito de karma (não da maneira comumente divulgada no Ocidente – de algo ruim), mas somente se levando em conta seu aspecto original, a partir do radical khir (ação através da compreensão), não seriam as probabilidades que se manifestam num ambiente apenas um potencial de manifestação das experiências geradas pela Consciência, algo como atratores kármicos de aprendizado? Portanto, dever-se-ia “curar” isso? Ou somente usá-los como ponte para se chegar à compreensão?

Conclui-se o escrito em questão com mais um tópico: a possibilidade da harmonização de Feng Shui possuir um papel espiritual ou se ligar de alguma maneira a este. Averiguou-se no decorrer do texto a substituição explícita (por uma questão didática) da palavra espiritualidade por um dos seus aspectos, a informação. Entretanto, mesmo ao se abordar uma questão diretamente pertinente a algo do “espírito”, da alma, em suas características energéticas específicas, como aura, campo bioelétrico (duplo etérico), chacras, etc, e as relações destas com o ambiente e com outras Consciências, o papel do Feng Shui não pode ser separado da estrutura de uma linguagem, já que tanto no sentido avaliativo quanto ao se postularem as recomendações, isso não deixa de ser uma visão arquetípica do lugar.

Isto posto, o Feng Shui Tradicional não resgata entidades perdidas ou melhora subitamente as qualidades espirituais de uma construção com a inserção de curas paliativas ou mesmo estruturais. De maneira análoga, um local poderia estar plenamente harmonizado, com excelente ancoragem nas Estrelas 8-Montanha e um belo Ming Tang no 8-Água, e ainda assim, estar muito denso em termos espirituais. O que o Feng Shui pode proporcionar são novas referências de perspectiva ao homem. A este sim, caberá a função de reconhecer ou reforçar as energias saudáveis existentes, transformar condições não adequadas ao seu bem-estar ou mesmo sucumbir às dificuldades, retroalimentando egrégoras desafiadoras do local ou mesmo da sua própria conduta de vida. Para isso não há cura externa que resolva, além da própria índole e revisão interna constante.

Assim, independentemente dos variados significados que podem ser atribuídos à Espiritualidade, o Feng Shui torna-se mais do que simples técnica para acessar, equalizar ou otimizar tal energia. É, em suma, uma possível representação de um devir espiritual, um vir a ser estrategicamente camuflado no maior dos desafios: o aprendizado cotidiano, nas pequenas coisas e circunstâncias supostamente prosaicas.

E dessa maneira o Feng Shui se torna vivo: um Feng Shui que ousa se “desconstruir”, que descongela teorias inabaláveis em complexas caldeiras contemporâneas, que aceita a dialética por não tentar ser nem tradicional nem moderno, nem sofredor nem inquisidor, apenas mais um representante de um Zeitgeist que urge em meio a tempos difíceis...

Mais do que um Feng Shui Científico ou Espiritual, está aí o vislumbre de um Feng Shui Consciencial...


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