Sírius e Sol alinhados. O Cinocéfalo acopla. O homem assume o corpo do cão para poder descer às regiões mais terríveis. Macaco ou humano? Sem sombra de dúvida, nenhum dos dois. Primeiramente veio o cão. Egípcios mumificavam os cães para que juntos aos seus donos (na cápsula invisível da morte) viajassem à bordo de seus corpos. É só rebobinar, paralisar o tempo. Converter o momento e reprisar o inverso da chegada. Logo avistamos o disparar da partida de Laika no foguete dos deuses-humanos. A vira-latinha russa, primeiro ser vivo a viajar o espaço, orbitando o nosso planeta. Talvez a saudade mais longínqua e nostálgica, a de voltar à sua estrela de origem. Mas o mistério de uma amizade imponderável e invencível reduziu o cão ao olhar cativo de seu dono. Para sempre.
O cão está latindo pra lua numa língua lasciva. Avisando chegadas e partidas, acusando pactos ancestrais já esquecidos. Do seu Eu com o Eu de todos os humanos. Cara de um, focinho do outro. Dos lêmures voadores e babuínos, re-clonando-se em formas de ursos, ienas, lobos, chacais, coiotes, para chegar ao mais sedutor dos homens atuais, o moderno e erótico lobisomem. Da constelação, Sírius sua estrela do Cão Maior, mistérios há de chegar. Nos uivos da canção noturna, que corre por túneis estelares, incandescendo a flâmula do céu brasileiro e de todas as nações do mundo. Os homens oram enquanto os cães ladram e as palmeiras esvoaçam nas praias da noite.
Na igreja ortodoxa do oriente, São Cristóvão é representado com corpo humano e a cabeça de um cão. Reza a lenda, que antes de se converter, Cristóvão devorou um homem e passou a latir como um cão; ao se arrepender e em prostração, foi recompensado por Deus readquirindo a forma humana.
O coração do homem é um cão maior, que late e bate de amor, em busca de seu guru-dono. Humanos não agüentam ficar solitários. Mas o cão sem dono abocanha sua própria solidão, vagando por ruas, terrenos baldios de abandono enquanto o archote da estrela lateja seu cio. Até hoje, não se tem conhecimento de maior cumplicidade amorosa, de lealdade mais nobre e amizade mais divina. A do cão com o ser humano. Talvez, um dia, depois de tantas guerras por toda a Terra, os homens não viverão mais aqui. Mas ficarão os cães. Ladrando contra o céu rubro. Os últimos pastores de almas humanas.
Deus não mais duvida, e a ciência, um dia, comprovará o ponto comum da descendência espiritual entre ambos. Anjo canino caído neste paraíso infernal de variadas matilhas. O cachorro reconhece no homem sua ancestralidade cósmica e o homem nele, a sua vida animal, instintiva.
Estórias dentro de histórias recontam a mais antiga amizade, projeto de pacto e amor destes dois seres tão diferentes, que numa escala da consciência, um dia fundiram-se. Na noite nebulosa dos longos pesadelos, onde a luz tênue da alma, levita sobre os pântanos; avançam como relâmpagos, saídos do inconsciente grego, babilônico, hindu, germânico, celta, romano, o cão Ostro, o cão Cérbero e sua tríplice goela, o cão Asterion, o cão Argos de Odisseu, o gigante cão de gelo Garm e outros carrancães. Assim como nas páginas mitovideográficas dos “sonhos de criança”, saltam Lassie, Rin Tin Tin, Bidu, Ideafix, Totó e Scooby-Doo dentre outros ludicães.
Era uma vez um parágrafo imemorial – “Da cúpula translúcida e suspensa da mecânica celeste, a noite astronômica engendra nebulosas, constelações e anãs-brancas. Véus de nevoa esgarçam, explode poeira cósmica, e estrelas precipitam. Aqui de cima, num relevo de abismos, ponto deste planeta primitivo, ecos de uivos e ganidos ressoam pelas cavernas. O luar banha as redondezas da terra, e em sombras descem degraus de planícies, que aos poucos se avermelham. Ali, no mais alto desfiladeiro, um ser com cara de pêlos e olhos cinzas, mira extasiado em direção aos vórtices astrais, que se abrem ao longe, no profundo infinito. Seus olhos fulguram à luz de cristais azuis, no frio noturno e glacial que o ar condensa. Após impensável viagem, Seres-Cães, aportam ao seu destino-missão-final. Terra – o planeta dos filhos de Sírius.
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