Em artigos anteriores, foi abordado um tema que está em linha com a conclusão da obra Feng Shui Clássico nos Tempos, em que o autor cita, como proposta de equilíbrio energético no lar, as quatro análises para averiguação qualitativa numa moradia: as Casas Emocional, Probabilística, Bioenergética e Consciencial. Nesse sentido, os escritos sugeriam uma ação dinâmica e conjunta das visões acima, como também direcionada aos aspectos do autoconhecimento, em que a edificação não deveria ser vista apenas como uma ferramenta para soluções prosaicas do cotidiano pessoal, mas, sobretudo, como espelho de um homem em reflexão e constante mudança.

Nesse interim, e corroborado pela teoria das tendências energéticas demonstradas no escrito de fevereiro intitulado 2018 – O Ano Wu Xu - Cachorro de Terra Yang, averígua-se, atualmente, uma série de eventos e posturas (sobretudo em território nacional) que condizem com uma tentativa de resposta a um profundo temor internalizado e inominável, onde os receios periféricos e particulares se tornam o veículo sinônimo desse medo estrutural e desconhecido. Pilares externos estrategicamente delineados facilitam a transferência abstrata da anomia existencial para alvos concretos, palpáveis e identificados como abomináveis, onde linguagens de ódio e repúdio tornam-se afrescos kitsch de estética bizarra, seja esta ilustrada por uma militância de verbete golpista com figura-fantoche popularesca ou por pintores que defendem um resgate dos bons costumes, das tradições familiares e da lisura de vida, mesmo que essa limpeza pela raiz seja efetuada aos moldes da forca, da pedra e do tiro.

A partir dessas premissas, apresenta-se a uma nova vertente, agora de cunho trágico, não oposta à ação de esperançar demonstrada nas dinâmicas residenciais acima, mas sim, e por que não dizer, complementar (e necessária), ao olhar otimista de um morador em estado de “brio”. Apresenta-se, portanto, a Casa Amaldiçoada.

Casa Assombrada como alívio à Maldição

Não conclua, leitor, que me refiro à Casa Amaldiçoada como sendo uma uma residência mal-assombrada, assediada espiritualmente e que desafia os usuários a lidar com problemas crônicos de cunho magístico ou de efeito poltergeist. Diria que essa última seja até uma benção, comparando-se à primeira, fruto de uma somatória destrutiva de outras nocividades do lar, em que o espelhamento homem-edificação se jaz muito distorcida. Apresento-lhes:

•A Casa Alienada: um símbolo da pós-modernidade, é um misto de incômodo gutural dos moradores com uma necessidade de fuga abismal, em que o movimento enquanto ruído é utilizado como ferramenta para não se sentir o silêncio inebriante e niilista dos espaços d’alma. Entorpecimento como sobrevivência, seja nas representações de felicidades pelo escopo das festas familiares engajadas ou através das viagens constantes, avassaladoramente catalogadas de maneira virtual e vivenciadas mais pelas mídias sociais do que in loco. Os moradores desse local costumam confundir informação com conhecimento, e as notícias espalhadas em mensagens digitais no núcleo de contatos se tornam fatos confirmados (para bem ou mal), sem qualquer discernimento ou aprofundamento. Em suma, é um lugar que tenta minimizar a dor, otimizar o prazer e manter o status quo pelo viés da barganha, do amor idealizado e diminuição das problematizações;

•A Casa Ressentida: cabe aqui uma breve explanação. Entende-se ressentimento como “um algo piorado” no que tange à inveja, e não um avanço da mágoa. E, em se tratando de pecados e distorções, tristitia alienum bonum (essa tristeza pela felicidade alheia – fundamento da inveja), tem base estrutural, por sua vez, no berço do orgulho, na concepção de que se é melhor que o outro. Como invidere é um ato envergonhado em si mesmo, concluir que sempre se é vítima de um olhar invejoso (e nunca como causador), acende-se uma soberba reativa: “Como pode, uma pessoa menor que eu, ser ou ter mais que eu?” Assim, surge o ressentimento, uma pílula dilacerante, utilizada para eximir o eu de um mea culpa, atribuindo totalmente a alguém ou alguma coisa a causa da minha angústia, pelo veículo da ira. Identifica-se, por conseguinte, um acelerador de afetos tristes de causa externa. Assim, essa casa é um furacão de irritação, de discussões fomentadas acusatórias, geralmente de cunho moralista-catequista-polarizadora, atualmente de catarse político-doutrinário-cristão. É, portanto, um lar não-lar, pois a tal chama da unidade familiar já se transformou num vulcão em erupção que queima tanto os vizinhos a sua esquerda, quanto os da direita. Pior, nos cômodos que ainda restam no interior da residência, tende-se a esquecer até mesmo do recém-nascido ao lado do galão de gasolina, pois parece haver mais honra em fomentar a raiva sobre quem é o culpado unilateral pelo aumento no preço dos combustíveis do que a refletir sobre as possibilidades de coparticipação na produção de sentimentos mais saudáveis;

•A Casa Utilitarista: é um local cheio de “puxadinhos”. Aqui, não me refiro às novas funções de uma edícula transformada em moradia ou à construção de anexos com cobertura, mas na crença cega de decisões utilitárias pseudo-estratégicas, que incluem optar por contextos que não estão alinhados com a perspectiva pessoal apenas para vetar algo, supostamente, “mais destrutivo”. “Você prefere um arquiteto louco que destrua a harmonia do seu jardim para transformá-lo num bunker militar ou uma gangue de mestres de obras que superfaturam tudo que fazem?”, lançariam a retórica distorcida os times do Nós versus Eles (qualquer que seja o lado enveredado). Independentemente do alinhamento pessoal e engajamento, o estrago na infraestrutura dessa edificação está feito: parece preferir-se, imperativamente, retirar os sutis pilares fundamentados com tanto esforço ético e as janelas que destacam as diversas paisagens de ser em detrimento a uma postura que prega a segurança pelo ataque, à dureza da rude pedra em substituição à estética do vidro, o vigor da navalha cinza que arranca a sutil autonomia da escolha lúcida, qualquer que seja a cor dessa parede;

•A Casa Desesperada: mais do que uma característica peculiar, esta é uma qualidade degradante que envolve um misto das entidades-residência acima, num grau doentio. Nesse ambiente, os moradores não falam, apenas gritam “verdades”, não dialogam, somente berram “certezas” (lembremos que berros podem também ser sorrateiros e perigosamente silenciosos). Ninguém escuta ninguém nesse local, pois todos estão contra todos. Uns assumem papel de catequista purificador, construtor engajado vestido em tom rouge de utopia estelar ou via bandada em verde e amarelo patriótico, como se nunca houvesse antes amor à bandeira além de instantes de copa mundial. Outros se anulam em causa desconhecida (meio vítima, meio alien), num movimento desistente e passivamente letárgico (“Vamos ver o que vai acontecer, né”), como se não importasse a dignidade da escolha em momentos de afunilamento temático (“Mesmo não concordando com nada, não há o que fazer!”). Este ambiente funciona apenas de maneira polarizada, sendo os tons e perspectivas entre os polos algo fútil e débil, onde o sofrimento dá o tom visceral e, o embate verborrágico, uma pseudo-sensação de cidadania momentânea. A casa é desesperada porque os inimigos contraventores são expostos e atacados sem piedade e os maison filiados, em sua maioria, tendem a evocar uma aura de pertencimento a um grupo unificado de moral superior que auxilia a limpar a nação. Ou seja, a mesma história é assim repetida, linha por linha, e a o lar, rebatizado, aos moldes da eira e beira. É, enfim, uma residência que chora silenciosamente, um lamento tortuoso pelos moradores que deixaram de escutar os sinais renovados das suas paredes;
 
O Cogito dos Sonâmbulos

Desta feita, a Casa Amaldiçoada é o reduto das moradias anteriores em formato de cômodo torto, em camadas de tristeza pela repetição da memória de sobrevivência. Na Casa Alienada, não há aprofundamento e reflexão, na Ressentida, falta a coerência coparticipativa e humildade. Na Utilitarista, não está presente o sentido de autonomia e escolha, e na Casa Desesperada, inexiste a possibilidade de diálogo construtivo e o sentido de equivalência. Em outras palavras, ingredientes bem definidos para a ampliação de nocivo aroma, quiçá destruidor da lucidez: o ódio, o temor e o torpor.

Na Casa Amaldiçoada, uma coisa é certa: Feng Shui não funcionará, limpeza espiritual com ervas, cânticos amorosos e mantras de harmonia só farão gastar tempo e energia, radiestesia, gráficos radiônicos, cristais consagrados e Ba Guas pendurados se tornarão apenas alegorias. Pergunto até se, nesses casos, atrás da vela do Anjo da Guarda na quina de parede há um ser alado de férias. E como toda a maldição, esta nasceu do homem, e do homem necessitará para quebrá-lo. Mas não pelas mãos do mestre budista, feiticeiro, professor de Fei Xing ou pelo xamã abnegado. Mas sim pelo homem comum, aquele que se diz trabalhador honesto, que afirma apenas querer proteger a família e o futuro dos filhos, mas que esbraveja ira e juízo de valor ao receber ou enviar memes políticos no WhatsApp. Esse é o ser humano que poderá (e deverá) salvar essa edificação, através do reconhecimento da sua fragilidade e capacidade de revisão pessoal, diminuição da odiosidade e mudança da postura reativa, para uma perspectiva mais consciencial, inclusiva e abrangente. Se há uma cura no horizonte, que esta não venha de um acaso externo transcendente (“Se Deus quiser”), mas sim pela emanação de uma atitude mais lúcida do próprio morador.

É dito que existem muitas moradas na casa do Pai. Se isso é fato, quem são esses seres que defendem os direitos humanos apenas para os humanos direitos? Que fazenda celestial abismal seria essa? E se Deus está em casa e abençoa o meu lar, que Deus é esse que, afinal, mora em mim?

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