A casa como representação do homem nesse fim de ano



Terminar mais um ciclo anual de interfaces sociais abre margem também para as cansativas expressões do tipo genérico-redundantes “É, já estamos em dezembro!”, “Mais um ano que se passa” ou genérico-esperançosos “Bom que se encerre mesmo, para que possamos entrar o próximo com o pé direito”, entre outros tão idiossincráticos e habitualmente resignados. É um tempo de supostos alívios, encontros de sub-amigos não tão secretos, compras antecipadas e repaginadas pelo modismo “Black Friday”, celebrações familiares obrigatórias, viagens à praia para aliviar as tensões (na versão econômica de cidade grande em crise, mais conhecidos como happy hours de fim de ano), tudo isso para que, em algum momento no início de janeiro, uma angústia geralmente dilacerante impacte a alma e o sentimento “apenas” das pessoas inocentes ou desavisadas, o que nos faz lembrar com peso de foice que praticamente nada mudou, tudo continuou como estava na primeira semana de dezembro, com as dores e sofrimentos similares. Os depreciadores da cultura nacional iniciam as retóricas depreciativas “Aqui a coisa só anda depois do carnaval”, já preparando a máxima sofista “O Brasil é um país que não deu certo”, entre outras repetições em que o interlocutor costuma se distinguir eticamente da sociedade que desdenha, num misto de ressentimento não coparticipativo, vitimização e ode a uma moral particular contraditória que, ao menos no argumento pitoresco, tende a beirar uma inocente (ou alienada) virtude angelical. E assim, abre-se mais uma estação, com uma esperança transcendental de melhora, já que, exceto em casos extremos, sempre há um lugar para se estar e buscar o sentido de união, mesmo por alguns dias, não? Mas será que temos isso mesmo, ao menos no significado intrínseco de harmonia?

Amplia-se o sentido acima ao contexto da celebração em si, o referencial significante: a casa. Perceba que não me refiro apenas ao lugar em que se estará ou se festeja os ritos natalinos e de passagem, mas ao ponto.
 
agregador das memórias afetivas (a moradia), que permeia, queira-se ou não, as histórias familiares e tendências de comportamento pessoal que fomentarão, mais tarde, muitos dos filtros de percepção categóricos do indivíduo, seus hábitos de defesa, juízos morais e, como não poderia deixar de ser, um pequeno mostruário sobre o melhor e pior de si. Nesse aspecto, faz-se aqui uma diferenciação clara entre a construção ou edificação (um lugar onde se permanece) do sentido de moradia (um acumulador de afetos, dada pela história emocional). Acrescenta-se, ainda, a definição de lar (local onde o sujeito sente-se vivo, em conformidade com o ser natural, uma extensão da alegria ativa do homem), o que se conceitua, de maneira prática, pelo bem-estar, visão criativa e renovadora da própria vida em ato de morar. Repete-se a pergunta estrutural: Temos isso?

No artigo anterior, foram comentadas as várias casas que comporiam a ideia de uma Casa Consciencial. Num contraponto, referir-me-ei aqui a três tipos de situações nos Novos Tempos que parecem antecipar um comportamento destrutivo pessoal – iniciado e reforçado pelo indivíduo, mas averiguável, por padrão, numa “egrégora da edificação” que, cada vez mais, são passíveis de dar inveja até mesmo aos constructos das películas Amityville e Evil Dead. A Casa Sofredora-Melancólica torna-se a primeira, como aquela que representa um pacote de estímulos pessoais desgastantes de ordem físico-emocional, como somatizações variadas, doenças crônicas, nostalgia excessiva, desistência e solidão. Já Casa Raivosa-Polarizadora pode ser notada como sendo, ao contrário da inicial (que se baseia na depreciação), um chamado para a guerra de nervos, abalizada em posturas exageradas ou moralistas (nos mais variados temas), reatividade desproporcional e stress gritante, o que pode levar a uma violência direta e indireta. A terceira é uma tentativa de sobreviver ao choque das demais pelo culto a um carpe diem massivo e maquiado de celebração: a Casa Catártico-Alienante, tão providencial nesse período, pode se mostrar na cultura das festas desconcertantes, na tentativa de esquecimento, a qualquer custo, das frustrações pessoais pelo viés de um torpor etílico ou similar, geralmente travestidos na atualidade como encontros gourmet.

Atina-se que uma edificação pode ter mais do que um desses “selos”, seja ao mesmo tempo (o que seria pra lá de preocupante), ou um dos tipos evoluindo ao outro sequencialmente, o que se mostraria também perigoso. Sugiro até a ideia de que tal “tríplice-coroa” da desconexão de si não é nada muito novo, apenas sendo notado com mais obviedade agora. O peso da memória, dos hábitos e necessidade de sobrevivência acabam moldando um ritmo massacrante à própria vida ética, o que fomenta a presença dessa entidade-selo que é um reflexo das próprias angústias do homem. Desta feita, a reatividade comum do início da semana, a ansiedade escapista a partir de quinta-feira e a tristeza gutural de domingo pós almoço seria um índice, uma semente-combustível dessas casas, agora amalgamadas como presença sentida no ato de morar, pelo tanto que a máquina das repetições se faz persuadir natural no pragmatismo-utilitarista. Temo que não entendamos que sempre teremos alguns desses aspectos, seja de maneira mais latente ou escondida, seja contrariando um excelente mapa de Ba Zhai, Fei Xing, Da Gua ou quaisquer metodologias místicas a escolher, apenas por dois motivos: somos seres extravagantes, contraditórios, complexos (e coparticipantes majoritários do que atraímos vivenciar – mesmo que tenhamos dificuldades em aceitar tal responsabilidade e autonomia) e, como já salientei em outros escritos, a construção não determina o que vamos experienciar e de que maneira (e nem chega aos pés de definir quem somos), pelos mesmos motivos destacados. Assim, a inserção de uma cura ambiental, uma limpeza espiritual ou uma equalização geobiológica não elimina tais malefícios (mesmo que possam atenuá-los momentaneamente), pois estas dores não são provenientes do ambiente, mas da alma humana.

E por falar em alma, parece claro que as três casas nocivas têm algo em comum: a ausência ou perda de um Lat-Lare (Fogo do Lar). Aqui se faz uma distinção do conceito ritualístico-familiar do fogo sagrado que esteve tão presente na cultura grega antiga e nos ritos aos ancestrais também encontrado no orientalismo. Refiro-me aqui à ideia de Alma da Casa (mas não no significado new age dos elementais ou devas regentes da propriedade), mas na maneira como os moradores dão sentido imanente às experimentações da vida e cotidiano, a edificação servindo como espelho desse processo, não como causa. Nessa perspectivação, portanto, Lat-Lare seria uma facilitação aos caminhos que lembram o horizonte das escolhas lúcidas e da virtude de mantê-las, mesmo em meio a tantas dificuldades, um tipo de afeto criativo conjugado e reforçado pelos próprios habitantes, uma fé pessoal (enquanto fides – fidelidade intrínseca de caminhada, nada relativa a uma devoção religiosa necessariamente), compartilhada pela família e resumida na singularidade do Lar como bem-viver e estar. E por que razão tal chama supostamente estaria diminuída ou apagada em muitas das construções atuais? Pois para mantê-la, é necessário aceitar a coragem da mudança e não a resignação ao senso comum, da transformação consciente do que se chama de sacrifício em direção a um comprometimento mais sereno, da tolerância crítica ao acolhimento real, da distinção entre união enquanto aglomerado solitário de pessoas e enquanto convivência e compartilhamento de experiências. Ou seja, dá trabalho, muito trabalho. E como parece que na representação dessa pós-modernidade, somos um pouco de algo ressentido que, além de buscar uma culpa-origem exterior às mazelas interiores, acostumou-se a não problematizar o que necessitaria ser observado e trabalhado, elevando a alcunha de um ideal de amor como fórmula rápida de solução e sucesso pessoal, fica cada vez mais desafiador e custoso esse foco. Não à toa, a metáfora ígnea está tão esquecida na alma e fragmentada nas imagens borradas das velas artificiais e artifícios de mundo. Pena que essas três casas do submundo não consigam agradecer a esta condição, pois são apenas efeito. Problematizar é rememorarmos que elas são, na verdade, nós mesmos.

Somos seres ritualísticos. Quando um momento tão aglutinador como o Natal e o Ano Novo chega na borda dos colapsos da função de onda quântica, acessam-se as memórias afetivas, os sentidos do querer e do que poderia ter sido se ampliam, e os guardiões do suportável tão conseguem segurar mais os portões do insuportável. Mesmo em meio ao caos da celebração, abrimos uma janela poética que relaciona história pessoal e medo da impermanência, culminando, em alinhamentos significativos, a função e relevância do que sentimos sobre a noção de construção, de moradia e de lar (e talvez, da dor enquanto ser, pois estas nos revelam o momento que decidimos nos tornar meros observadores passivos das situações, tão salientadas pelas áreas viventes). E isso machuca. Mais ainda, determina a ancoragem, por mais tempo, das três Casas Tristes, as que não tem Potência de Vida, as que carecem de Alma.

E como resolver isso, então? Talvez pela reformulação da pergunta, uma atenção de que não há algo a ser resolvido de maneira utilitarista, mas sim um olhar de Agon, coragem para um enfretamento de si em direção a si mesmo, sem fórmulas pré-estabelecidas e promessas de solução por barganha cósmica. Ter ânimo para o abrir os porões fechados, observar as incongruências no tato com paredes. E se caso, nessas reflexões conscienciais vigorosas, chegarmos a constatação de que estamos sozinhos nos palácios que imaginávamos cheios, e estes se mostrarem como uma singela quitinete, que esse ambiente sui generis, ao menos este, esteja pleno em presença, em potencial de compartilhamento, em Alegria Ativa, pois nela estará a amplitude do nosso Ser. E só isso já vale a celebração. Em solitude ou em família, com ou sem vinho.

Bom Sheng Qi a Todos!

 


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