(Parte 1)

No verão de 2009 escrevi um texto a pedido de um colega pesquisador, relacionando as técnicas ambientais ancestrais aos movimentos místico-esotéricos em voga na época. Seria o Feng Shui Tradicional uma metodologia concreta e prática, avessa às questões sensíveis ou existiria um fio comum, mesmo que tênue, que ligasse tais estudos ao complexo e tão contraditório universo da espiritualidade?

De uma maneira adaptada e formatada para o presente contexto, apresento, em duas partes, o conteúdo escrito há 9 anos e apresentado na obra Feng Shui Clássico nos Novos Tempos – Uma Perspectiva Consciencial e Imanente, de 2015. Parece-me ainda relevante, enquanto parâmetro reflexivo, tendo em vista as dinâmicas atuais referentes às buscas existenciais e processos de cunho global. Vamos a ela, portanto..



A complexidade de se escrever sobre a espiritualidade de uma maneira não dogmática ou desvinculada de uma doutrina denota um exercício extremamente desafiador, já que é comum, tanto para os leitores quanto para próprio o escritor, recorrer a um pacote anterior de pressupostos culturais, religiosos ou místicos para servir de base analítica ao proposto informativo.

Afinal de contas, como se pode relacionar espiritualidade, termo tão global e específico, tão esotérico e genérico, à técnica do Feng Shui? Para alguns, isso até pode ser muito comum; entretanto, ao se averiguar estritamente as tradições do Feng Shui Clássico, essa conexão pode não estar assim tão evidente.

A palavra espiritualidade significa algo que tem qualidade ou caráter espiritual, e esta última, por usa vez, relativa ou pertencente ao espírito (por oposição à matéria), algo relacionado a uma religião ou ao devoto desta, ou ainda, algo místico, sobrenatural. Bem, por conseguinte, fica fácil entender a ligação entre o Feng Shui e o taoismo, se levarmos em conta esse contexto. Cabe, nesse instante, um parêntese: por que se salienta tanto a semântica das palavras num texto que poderia ser escrito de maneira mais fácil, mais direta e sem tantos floreios? Simplesmente porque o uso generalizado de termos científicos ou pelo menos de uso mais técnico para se descrever “coisas” da espiritualidade traz um problema: conceitos equivocados e imprecisos de algo que, em essência, já é de difícil digestão além dos grupos fechados.

Comumente ouvem-se termos inusitados, como vibração sutil, ou mesmo “a energia espiritual vibra mais rápido que a do corpo”. Interessante notar a ineficácia do termo, já que por convenção, com a vibração tem-se a ideia de frequência e ser mais ou menos sutil, algo relacionado à densidade; em resumo, seria o equivalente a dizer que a temperatura de hoje está em 26 maçãs. Esquisito, não?! Da mesma maneira que é bem mais razoável utilizar os termos sutil ou denso para descrever as condições dos corpos ou eventos espirituais (e não vibração), o mesmo princípio deveria ser utilizado ao se relacionar outras áreas: por exemplo, mesmo sendo de uso comum, na verdade não existe uma filosofia taoísta, budista, etc., mas sim uma sabedoria, já que para haver a dita filosofia, seria preciso um fundo baseado na dialética, ou seja, um embate de forças e pontos de vista que determinaria, em suma, verdades relativas e momentâneas, mais do que verdades absolutas ou visões de mundo próprias de uma ótica espiritual ou religiosa (a sabedoria).

Daí vem um dos pontos mais criticados pela visão científica: os iniciados nas artes espirituais utilizam muitas vezes os termos cunhados pelos cientistas sem ao menos saber qual é o significado e o conceito por trás das palavras; ou seja, utilizam-nas simplesmente por que ficou comum usá-las, esotericamente, dessa maneira. Induz-se, nesse momento, o outro questionamento: mas o que isso tem a ver com o universo do Feng Shui? Muito, na verdade. Pelo menos três tópicos fundamentais podem surgir, abarcando o fundamento dos significados. Nesse primeiro artigo, será abordado um deles, talvez a questão fundamental: a validade ou não de tentar sobrepujar o Feng Shui ao status de ciência, por vezes substituindo a palavra pelo seu ancestre Kan Yu ou adicionando os termos Clássico ou Tradicional quase como sinônimos de um Feng Shui Científico (e em oposição ao cunho místico e deveras ritualístico encontrado nas versões modernas).

Sobre esse aspecto, é possível considerar dois pontos de vista. Se a intenção é diferenciar o Feng Shui antigo da sua visão moderna (Chapéu Preto e variações), o termo científico seria até “passável”, mesmo que genérico. Mas se o foco for exaltar o sentido mais original da palavra ciência, evidencia-se um equívoco quase falacioso. Por que o Feng Shui seria uma ciência? Por acessar uma sabedoria ancestral ou utilizar combinações de números em algumas de suas escolas? Ou seria por ser, aparentemente, mais lógico e por se basear numa metodologia coerente ao paradigma contemporâneo? Pela simples constatação dos efeitos, diriam os consultores mais crédulos ao sistema. Mas é interessante observar que mesmo tal condição é passível de crítica. Será que todas as casas Wan Shan Wan Shui são realmente boas para prosperidade e bom para relacionamentos e saúde? Os efeitos de uma combinação 5-2 num quarto sempre serão de doenças ou acabarão em tragédias? Um estudioso informado compreenderá que não, que essas premissas dependerão de uma série de outras circunstâncias, como os aspectos formais externos, os usos internos das Estrelas Wang, a relação dos Ming Guas na combinação, as relações com as Estrelas Tempo, com o Mapa Ba Zi dos moradores, e ainda, e mais importante, a interação pessoal com as probabilidades (tendências de uso pelas reações psicoemocionais). Ou seja, essa complexidade de possibilidades e circunstâncias não é uma comprovação científica, mas sim uma constatação individual ou de um pequeno grupo (o que, a priori, tem relevância nas pesquisas humanas, mas não em exatas). Assim, o máximo que se poderia esperar do Feng Shui seria o avanço a uma metodologia científica (que difere do termo ciência per si), o que já ocorre com o esforço de alguns colegas brasileiros e pesquisadores em território estrangeiro.

Por esse viés, o Feng Shui Tradicional possui uma fonte similar aos outros métodos místicos: de que algo funciona por meio de pressupostos ou mesmo crenças, sejam eles míticos (conhecimento original atribuído a figuras como Fu Xi, Da Yu, Jiang Da Hong, entre outros), verdades metafísicas (“as Estrelas, representadas pelos números do He Tu e Luo Shu possuem personalidades que influenciam no comportamento do homem”) ou mesmo dogmáticos (“as únicas verdadeiras escolas de Feng Shui são as que se originaram do Yi Jing”; “o pergaminho Qing Nan Jing é o maior clássico sobre o Xuan Kong”).

Dessa maneira, o Feng Shui é muito menos ciência e mais arte. Uma arte sensível que envolve, naturalmente, técnicas analíticas, mas ainda assim conectadas a uma percepção cognitiva comum em outrora e que agora se salienta numa ampla visão holística. E por que não dizer, também, de cunho espiritualista?


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