Os Sha e Si Qi implícitos no ato de morar – Um Olhar Metamorfo-simbólico

Relações do filme Gisaengchung, de Bong Joon-ho, com o Feng Shui Tradicional

 



Atenção: o artigo se baseia no estudo de possíveis relações entre a estética do filme Parasita (2019) e algumas teorias referenciais do Kan Yu, sobretudo na sua interface formal (Xing Shi). É importante salientar que o foco não será efetuar uma resenha ou crítica apurada do longa-metragem, mas destacar pontos específicos do mesmo e compará-los, como rima conceitual, às conjeturas de “vento e água. Assim, para uma melhor assimilação, recomenda-se assistir à obra antes da leitura do artigo em questão, além de uma fundamentação básica das dinâmicas do Feng Shui Tradicional (já abordadas em artigos anteriores, nesse jornal).

    Ganhadora da Palma de Ouro em Cannes, Gisaengchung é mais uma obra cinematográfica sul-coreana de grande relevância, que estimula um nível de imersão cognitiva e engajamento emocional tão ou mais impactante que seu primo poético Ah-ga-ssi (The Handmaiden, 2016). O diretor Bong Joon-ho foi capaz de transitar entre vários gêneros de maneira fluída, como o suspense, o thriller psicológico, a comédia e, principalmente, o drama, tal qual dança harmônica, sem quebras abruptas ou alívios cômicos frágeis facilmente constatáveis no mainstream hollywoodiano. Destaca-se a trilha sonora erudita, sobretudo partes da peça Rodelinda, de Händel (séc. XVIII) que estabelece (e porque não dizer, sugere, de maneira provocativa, irônica e a partir da própria sinopse da ópera) um diálogo de causa e efeito entre as cenas, as decisões dos personagens e o próprio desfecho chocante da película.
    
    Interessante notar que a premissa do filme pode ser considerada previsível e até trivial: a família Kim, de moral discutível, vive em condições de extrema dificuldade financeira numa casa-porão, quando uma oportunidade de se passar por um universitário faz com que o filho ludibriador de nome Ki-woo (Kevin) adentre à residência da abastada estirpe dos Park para ministrar aulas particulares para a filha (Da-hye). Aproveitando as situações de carência emocional da estudante ginasial que busca um namorado, da alienada e semi-histérica progenitora (Sra. Park), da governanta de confiança que tem uma alergia mortal a pêssegos (Moon-kwang), do pseudo sensitivo-artista e superprotegido filho mais novo (Da-song) e do empresário de sucesso que receia manchar a  reputação (Sr. Park), os sagazes golpistas, aproveitando as situações e de plano em plano, “recomendam” à rica família uma terapeuta artística com especialização na Universidade de Chicago para auxiliar nos traumas e superatividade de Da-song (trata-se, na realidade, de Ki-jung / Jessica, a filha “profissional” do bando), além de manipularem as conjunturas para que se contrate um novo motorista de confiança (Tio Kim, na verdade o pai embusteiro Ki-taek, o mais raso e ogro do grupo), e, é claro, de fazerem os Park despedirem a governanta para adquirirem, através de um “serviço exclusivo” para VIPs, uma nova preceptora (naturalmente, insere-se a mãe falsária, Choong-sook, a mais ardilosa dos quatro). Em pouco mais de uma hora de projeção, o primeiro ato do filme se encerra: a família Kim está toda empregada, sugando e drenando, como parasitas, a energia vital da abundante residência.

    Sobre os aspectos fengshuísticos, algumas cenas iniciais já valem ser destacadas. Nos primeiros minutos, a apresentação dos personagens contidos na casa-porão é feita a partir de um dos únicos pontos focais em que há uma vista para exterior: uma pequena janela, que se encontra quase abaixo do nível da rua (esta, aliás, acentuado pelo Sha Qi, a energia cortante e opressora que atinge o imóvel), além da condição de Si Qi / Energia Morta, da própria moradia em questão, praticamente enterrada – alusão à estagnação e perspectiva de vida (a necessidade de deixar a janela aberta para “aproveitar” a dedetização da viela para dar fins aos insetos da casa antecipa as estratégias que os Kim realizarão para sobreviver). Um outo momento pelicular é a perda do sinal aberto do wi-fi. Sem rede própria, a família tenta se conectar ao que se apresenta no momento, encontrando o único sinal disponível no banheiro, literalmente acima do vaso sanitário. Não seria uma crítica mais que simbólica à vida digital, daquela que dissimula informações, fundamenta alienações e mascara os quadros duros de uma vida praticamente insuportável?

    Ao receber um presente do amigo (aquele que irá oferecer a sua vaga de tutor de inglês), Ki-woo fita a pedra que ganhou em formato de montanha (um marco de abundância e prosperidade, segundo o colega). “Essa pedra tem muito simbolismo”, contempla, imaginativo, o garoto que irá embarcar, em breve, numa jornada de ilusão e autodestruição. No Kan Yu, o conceito de Montanha (Shan) é mais do que bons relacionamentos e saúde. Shan representa a virtude da continuidade, dos fundamentos de uma boa vida, os referenciais de caminhada e daquilo que já é intrínseco, das conquistas passadas e do que foi herdado (o sentido de segurança). Nesse aspecto, o presente em formato de pedra alegórica torna-se um duplo fardo ao futuro Kevin: como não há nada nessa herança (maldita, talvez), ele assume o devaneio (não o bachelardiano criativo, mas sim o nocivo, a partir da mentira e negação de si) e se torna semente incontrolável de desejos destrutivos – dele e da própria família charlatã, em meio às possibilidades epicuristas apresentadas durante a trama. Tal montanha-veneno, portanto, o fará quase que perder a cabeça (literalmente, como explicitado genialmente no ato final do filme).

    Na camada externa, o longa-metragem expõe de maneira direta as chocantes diferenças sociais entre as classes, evidenciando (enquanto localização, tamanho e escala), os ambientes dos Kim e dos Park. O primeiro encontra-se quase que enterrado (na parte “esquecida” do mundo) enquanto o outro, no topo de uma colina, protegido e, ao mesmo tempo, dominante (o fascínio da família rica ao american way of life parece fazer uma referência indireta até às virtuosas mansões próximas a Mulholland Drive). Adentrando pela primeira vez no terreno dos futuros empregadores, Ki-woo solta, ao ver o amplo jardim: “Nossa, que bonito e grande”, uma alusão à disparidade de um visível Sheng Qi / Energia Abundante, com a sua vida em melancólico Si Qi.

    O diretor joga com pressupostos, induz interpretações, brinca com os possíveis juízos de valor arraigados (mas escondidos) do espectador. Logo após apresentar tal disparidade de classes, Bong Joon-ho parece flertar com o conservadorismo, ao apresentar uma família que construiu uma riqueza aos custos de muito trabalho árduo em que os desafios para com à família são os ônus de um perfil empreendedor do marido (“que culpa tenho se consegui me tornar rico, e consegui dar uma boa vida à minha família?”, possivelmente pensaria), por vezes ausente das decisões mais diretas da casa, mas que procura contornar a situação sendo um pai proativo e atencioso. Em acréscimo, o discurso dos Park parece ser muito inclusivo no sentido social, sem preconceitos, dando prioridade ao caráter e experiência dos funcionários em vez de títulos ou classe econômica. Por outro lado, deixa-se claro, inicialmente, que o movimento maquiavélico está apenas com os quadrilheiros Kim, um antro de contraventores que aproveitará qualquer inocência e bom grado para ludibriar, mentir e alastrar o caos, impactando pessoas honestas (reforçando o famoso jargão “ladrão vagabundo”, de maneira burlesca). Em outras palavras, mesmo que não se escancarem maniqueísmos, já se sugerem indicações de bem e mal para a torcida.

    De maneira hábil, o diretor começa a inserir sutis indícios de juízos morais até chegar a infâmias preconceituosas que desconstroem os valores dessa “casta superior benevolente”, a começar pela metáfora do cheiro: de tempos em tempos, os Park sentem um odor peculiar nos seus subordinados (“será que precisaremos mudar o sabão em pó e o amaciante de cada um, para não notarem a mesma fragrância?”, reflete Ki-taek). Mal imagina ele que o aroma indica o mais vil comentário em forma de “buquê preconceituoso”, tornando, às narinas dos donos, um sinal da diferença de status social, cada vez mais forte e desconfortável com o decorrer do filme, como um julgamento que estes gostariam de escancarar verbalmente. O cheiro é, portanto, o do ralo, do esgoto, da pobreza, da miséria (e isso os Parks abominam, em realidade, a despeito do discurso inclusivo). Outros indicativos são mais literais: uma das qualidades que o progenitor destaca nos funcionários é o de “não cruzar a linha”. Tal linha, que inicialmente parece se referir a questão de respeito e atenção quanto à função (o servir), na verdade se mostra no sentido da própria casta social (explicitada na relação hierárquica entre amo / dono e serviçal – destaque ao último ato, perto ao clímax, em que o Sr. Park mostra-se enojado com o cheiro que sente ao pegar a chave do carro em meio ao rude personagem que está desfalecendo). Na verdade, o sinal de repulsa já era sugerido em pequenos recortes, como nos momentos em que o nome da empresa se destacava na fotografia (Another Brick). A postura de Sra. Park é também digna de nota: de mulher inocente e preocupada destelha-se uma personagem rasa, genérica e entejada aos odores-casta já comprovadamente ruins do motorista (uma socialite absolutamente fútil, que surge como num repente também no ato final).

    Além dos personagens complexos, outras camadas ocultas no sentido simbólico-arquitetônico são pouco a pouco desveladas. Se a figura da mansão e da casa-porão representam os parâmetros Sheng e Si Qi já destacados, duas outras são passíveis de análise: a tenda indígena de Da-song como uma alegoria do universo onírico enquanto proteção espiritual para a criança, uma base possível ao seu frágil alicerce psicoemocional, tal qual referenciada, como fundamento de diálogo reequilibrante, nas metodologias Ba Zhai / 8 Palácios, sobretudo nos Portentos Tian Yi e Fu Wei (Medicina Celestial e Trono Direcional, respectivamente). A outra se refere à descoberta do bunker abaixo da famosa mansão, o primeiro plot twist da trama, a marcação início do segundo ato. A revelação de uma vida oculta (uma casa nas entranhas da outra) releva o princípio do submundo, um Si Qi no subsolo de um suposto Sheng Qi imaginário (uma Casa Pandora, portanto)! A partir desse instante, a revelação demonstra uma simbiose de processos parasitários em rede: uma família nobre que está sendo enganada por uma família de charlatões, mas que já estava sendo sugada por uma outra, que se escondia nos bunkers do palácio pós-moderno (a ex governanta Moon-kwang e, principalmente, seu confuso-desesperado marido). Em outras palavras, a absurda confusão coloca em perspectiva a seguinte questão ética: Em que tipo de residência realmente se mora? Há segredos guardados nas paredes das construções ou nos porões-abismos internos do Ser? O que fazemos com eles? Deixaremos os nossos demônios se gladiarem até sumir? Ou será que estes se unirão e, ao ascender ao térreo, nos amaldiçoarão em ataque conjunto e acelerado?

    Veicula-se que Feng Shui significa, literalmente, Vento e Água. Sobre o primeiro, Feng poderia ser associado às ações, condutas lógicas e ilógicas incentivadas pelo desespero e zonas de conforto, uma relação de afetos entre as pessoas envolvidas e suas decisões devastadoras no longa-metragem, enquanto expressões verbais e silenciosas. Sobre o segundo, Shui é a expressão, a estrada com vários matizes entre lugares e coisas (em sua radicalidade, vide filme taiwanês He Liu / o Rio, de 1997), desde o sentido de abundância (os Kim admirando a chuva pelo belo enquadramento sala de estar-jardim, enquanto se embebedam na residência vazia durante a viagem dos Park), até o desespero em assistir à destruição da sua residência-porão pela água-enchente, ao retornarem ao seu ambiente original. A bela rima poética se vislumbra à lúgubre família charlatã, quando percebem que estão em meio a uma briga de foices com os parasitários antigos (um dano irreversível no sonho idealizado) enquanto vivenciam a perda do mínimo que tinham e da sua identidade (o sentido do dilúvio devastador). Haja Shui Long / Dragões de Água nessa história! Não há culpados e inocentes em categorias pré-definidas nessa tragédia, mas ambos os dissabores marchando em uníssona destruição. Todos acabam sendo responsáveis diretos ou indiretos pelo andamento das situações e, por fim, se tornam vítimas de uma brutal poesia às avessas: “o Qi cavalga nos Ventos e descansa nas bordas da Água”.

    E ao redimido (e ainda mais sonhador) Kevin, que jornada foi essa que, iniciando com a procura de um sinal Wi-Fi, se encerra com a mais singela das comunicações analógicas, o código Morse expressado em lustre? Eanquanto o imaginativo filho efetua o maior dos planos para salvar o pai da morada secreta (agora a partir de Dao De e Dou Shu – exercer a ética de quem ele pode realmente se tornar, pelo esforço de si, sem tramoias ou desvios, abarcando a própria dureza da vida como impulso, e com a pedra-montanha devolvida ao rio), Ki-taek, o pai, aguarda em lamento profundo e no autoexílio (um não-plano), uma possibilidade de redenção pelos atos cometidos em momento de desespero familiar e reação intempestiva.

    E se o impactante filme se torna, nesse momento, estudo simbólico de uma casa enquanto ato de morar na complexidade caótica dos mundos cotidianos, que longa-metragem o leitor associará à própria edificação, nesse fim de ano e nos próximos? The Sound of Music (A Noviça Rebelde), com Julie Andrews a cantar sonhadora em meio às campinas verdejantes? Ou Rudolph (A Rena do Nariz Vermelho), uma mensagem natalina singular, direta e esperançosa? Bem, seja qual for a decisão, que a arte de Bong Joon-ho nos inspire à reflexão, através de suas provocações chocantes (por vezes de dura estética), chacoalhando assim a poeira das nossas eiras e beiras e virando-nos do avesso.

Assim sendo, enquanto o modismo se concentra em evitar as pessoas ditas tóxicas e reforçar o sorriso motivacional, que possamos exercer, ao menos, um pouco da maturidade de também reconhecer e lidar com os nossos parasitas interiores em meio a perus e frisantes.

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